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sábado, 14 de agosto de 2010

Primeira vez

Pulsares que nem sequer sonham existir. Sentes a brisa mas nem desconfias que há neurônios sendo disparados em teu corpo.
Tu te dominas e és dominado. Um macho dominado. O sangue das tuas veias corre freneticamente num compasso completamente desritmado e tu  nem sequer desconfias dos neurônios enquanto a doce brisa espanca   teu rosto, que existe desde antes que tu pudesses ter consciência de que és.
E o suor que pinga, esse líquido que é só mais um no teu corpo composto de líquidos. Esse suor que agora indica que há pouquíssimo tempo todos os teus músculos estiveram rígidos a conhecer outro corpo.
Tu estás sentado, sozinho, a olhar as pessoas que pateticamente passam, exibindo seu existir. Tuas pupilas estão dilatadas e teus nervos, que não te dizem nada, estão prestes a explodir. Tu és um homem, todos os teus órgãos funcionam perfeitamente e tu sentiste isso há alguns minutos.
Tu sentistes a vida e te extpostes a ela da mesma forma como agora tu te expões a essas patéticas pessoas que não param de passar.
Agora o que tu sentes é o tic tac do relógio que limita o teu estar nesse espaço. Teu cérebro está captando de novo as imagens de quando o milagre aconteceu, tu estás completamente paralisado, a olhar para dentro com os olhos na tampa da garrafa que o acaso guardou para que tu pudesses olhar no futuro, que é agora, enquanto te preenches de agonia e levanta-te de súbito.
E então de súbito, percebes o mundo, sentes os neurônios e te reapaixonas. E o dia acaba puxando a madrugada que será elo entre dois encantos, e tu percebes também que sobreviveste.

Uma didática da invenção

1.                                                                                                                                                             Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

2.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

3.
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

4.
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

5.
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

6.
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

7.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

8.
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

9.
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

10.
Não tem altura o silêncio das pedras.

11.
Adoecer de nós a Natureza:
– Botar aflição nas pedras
(Como fez Rodin).

12.
Pegar no espaço contigüidades verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício para dar
banho nelas.
Essa é uma prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.

13.
As coisas não querem mais ser vistas por
pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.

14.
Poesia é voar fora da asa.

15.
Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o
abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de
um primal deixe um termo erudito. Aplique na
aridez intumescências. Encoste um cago ao
sublime. E no solene um pênis sujo.

16.
Entra um chamejamento de luxúria em mim:
Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda
a espessura de sua boca!
Agora estou varado de entremências.
(Sou pervertido pelas castidades? Santificado
pelas imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

17.
Em casa de caramujo até o sol encarde.

18.
As coisas da terra lhe davam gala.
Se batesse um azul no horizonte seu olho
entoasse.
Todos lhe ensinavam para inútil
Aves faziam bosta nos seus cabelos.

19.
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

20.
Lembro um menino repetindo as tardes naquele
quintal.

21.
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais
ou no Viterbo –
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
– Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
– Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
– Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:

– 
Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc.
Etc.
Etc.

Maior que o infinito é a encomenda.                       
Manoel de Barros

O morto e o vivo

Inútil pedir perdão
Dizer que o traz no no coração.
O morto não ouve.


Ferreira Gullar

Querido diário (Tópicos para uma semana utópica) Cazuza

Segunda- feira:
Criar a partir do feio
Enfeitar o feio
Até o feio seduzir o belo

Terça-feira:
Evitar mentiras meigas
Enfrentar taras obscuras
Amar de pau duro

Quarta-feira:
Magia acima de tudo
Drogas barbitúricos
I Ching
Seitas macabras
O irracional como aceitação do universo

Quinta-feira:
Olhar o mundo
Com a coragem do cego
Ler da tua boca as palavras
Com a atenção do surdo
Falar com os olhos e as mãos
Como fazem os mudos

Sexta-feira:
Assunto de família:
Melhor fazer as malas
E procurar uma nova
(Só as mães são felizes)

Sábado:
Não adianta desperdiçar sofrimento
Por quem não merece
É como escrever poemas no papel higiênico
E limpar o cu
Com os sentimentos mais nobres

Domingo:
Não pisar em falso
Nem nos formigueiros de domingo
Amar ensina a não ser só
Só fogos de São João no céu sem lua
Mas reparar e não pisar em falso
Nem nas moitas do metrô nos muros
E esquinas sacanas comendo a rua
Porque amar ensina a ser só
Lamente longe por favor
Chore sem fazer barulho

Procurei em todos os lugares por onde andei um alguém que me entendesse e também á si mesmo. Não encontrei, talvez por que não procurei como deveria ou talvez por que essa pessoa estava ocupada demais procurando os defeitos alheios. Já sofri bastante com a idéia de nunca encontrar alguém perfeito e sofrer mais quando me decepcionasse por isso, aprendi a não sofrer mais, não por que essa idéia não existe, pois existe e está ardentemente me machucando com freqüência, mas aprendi a conviver bem com esse fato, afinal eu sou uma pessoa imperfeita que também decepciona.
Fico pasma com a capacidade de certos seres humanos de serem hipócritas. Não a hipocrisia que se faz necessária à vida em sociedade e sim uma exagerada, que maltrata e me dá nojo. Pobres seres humanos, eu, você... Idiotas, imbecilizados pela própria ignorância de não transformar conhecimento em sabedoria e passar a vida tentando conhecer e ter o tão almejado saber.
Machuquei meus joelhos enquanto rezava e enquanto rezava conheci meus próprios demônios. Não sofro mais com a perda, nem com a hipocrisia que certas pessoas têm em demasia, não me importo mais com os sonhos que talvez não passem disso. A vida é linda e merece ser curtida, afinal quem saberá quando será tarde demais?
Às vezes deixar fluir é o remédio mais santo para evitar aflições posteriores e sofrimento descomedido, e nem sempre aula teórica é melhor, pois a prática é mil vezes diferente.
É por isso que parei de esperar, gosto do que vem como inusitado. Viver agora é como nadar num rio e as coisas acontecem de forma natural. Eu agora sou natural: vivo, sou e de fato estou no lugar onde me encontro. Poucos o fazem.
Sou grata por conhecer os que conheci. Ainda acredito na essência das pessoas. Me sinto mais leve. Flutuar se faz possível.
A gratidão é um dos melhores sentimentos que há. E é só.

Depoimento

Eu sou um homem mal e egoísta, as pessoas tentam me fazer bom. Eu não faço por merecer nenhum dos sentimentos que eles por amor, me oferecem.
Eu não aceito ajuda e só penso em mim, todos os esforços deles para comigo são em vão: eu jogo tudo fora, me dispo com uma agilidade impressionante. Nenhuma semente minha brota.  Sou totalmente infértil. Eu não tenho razão de existir, embora seja eu quem enche o bolso de todos esses ao meu redor. Não só o bolso, preencho cada vazio da alma de quem precisa, mas no fim tudo isso faz parte do meu ritual maléfico de tortura mascarada. 
Eu não posso nunca despir-me de minhas máscaras pois que a sociedade assim o exige. A sociedade é boa e me insere no sistema. Ela diz que sem o sistema eu não atingiria a felicidade, então eu por obediência, trato de me encaixar do jeito que me caiba. 
O sadismo está em mim, devora todas as minhas entranhas, e dentro das tuas veias corre o líquido do meu prazer. Eu mato, roubo, minto. Eu mato, roubo, minto por plenitude. Eu sou pleno em qualquer lama cabalística e teus ratos valem pra mim, dragões. 
Eu sou o fio de cabelo na tua sopa, você precisa tirar-me cautelosamente e beber o líquido que é o suor dos teus. Tu bebe-o e eu os engulo por inteiro. 
Ninguém quer ser igual a mim, mas eu estou dentro dos pedaços de cada um.