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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Para virar passarinho

Para virar passarinho é preciso leveza.
Não leveza de massa, leveza de alma.

Além disso, é preciso que se olhe tal como um passarinho.
É preciso que se olhe profundamente
como se quizesse descobrir a alma do que se está vendo.
Depois, quando já se é quase um passarinho
vai-se querer ver a alma do que se está vendo.
Pois para ser um passarinho
é preciso que se acredite que tudo tem alma.

Alçar voo tem mais a ver com as cores
do quê com a asa em si
portanto é preciso que se cuide da essência
pois é esta a responsável pelo colorido do voo.

Então pra cantar
necessita-se uma sutileza na visão.
Pra que o canto saia mais bonito
é preciso que os olhos sejam justos( tal qual o coração).

E pouco a pouco transformando,
um pouco aqui e um outro ali,
quando não se percebe se é um passarinho.
É que o passarinho não se percebe mesmo,
ele anda distraído: seu mundo é o ar.

E é aereamente que ele encanta quem o olha.
É que pra se observar passarinhos (sem malicia ou intenções)
é preciso já ser (ao menos em parte) passarinho
na terra ou nas nuvens (que é onde os homens pássaros costumam viver).

sábado, 14 de agosto de 2010

Primeira vez

Pulsares que nem sequer sonham existir. Sentes a brisa mas nem desconfias que há neurônios sendo disparados em teu corpo.
Tu te dominas e és dominado. Um macho dominado. O sangue das tuas veias corre freneticamente num compasso completamente desritmado e tu  nem sequer desconfias dos neurônios enquanto a doce brisa espanca   teu rosto, que existe desde antes que tu pudesses ter consciência de que és.
E o suor que pinga, esse líquido que é só mais um no teu corpo composto de líquidos. Esse suor que agora indica que há pouquíssimo tempo todos os teus músculos estiveram rígidos a conhecer outro corpo.
Tu estás sentado, sozinho, a olhar as pessoas que pateticamente passam, exibindo seu existir. Tuas pupilas estão dilatadas e teus nervos, que não te dizem nada, estão prestes a explodir. Tu és um homem, todos os teus órgãos funcionam perfeitamente e tu sentiste isso há alguns minutos.
Tu sentistes a vida e te extpostes a ela da mesma forma como agora tu te expões a essas patéticas pessoas que não param de passar.
Agora o que tu sentes é o tic tac do relógio que limita o teu estar nesse espaço. Teu cérebro está captando de novo as imagens de quando o milagre aconteceu, tu estás completamente paralisado, a olhar para dentro com os olhos na tampa da garrafa que o acaso guardou para que tu pudesses olhar no futuro, que é agora, enquanto te preenches de agonia e levanta-te de súbito.
E então de súbito, percebes o mundo, sentes os neurônios e te reapaixonas. E o dia acaba puxando a madrugada que será elo entre dois encantos, e tu percebes também que sobreviveste.

Uma didática da invenção

1.                                                                                                                                                             Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

2.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

3.
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

4.
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

5.
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

6.
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

7.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

8.
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

9.
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

10.
Não tem altura o silêncio das pedras.

11.
Adoecer de nós a Natureza:
– Botar aflição nas pedras
(Como fez Rodin).

12.
Pegar no espaço contigüidades verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício para dar
banho nelas.
Essa é uma prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.

13.
As coisas não querem mais ser vistas por
pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.

14.
Poesia é voar fora da asa.

15.
Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o
abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de
um primal deixe um termo erudito. Aplique na
aridez intumescências. Encoste um cago ao
sublime. E no solene um pênis sujo.

16.
Entra um chamejamento de luxúria em mim:
Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda
a espessura de sua boca!
Agora estou varado de entremências.
(Sou pervertido pelas castidades? Santificado
pelas imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

17.
Em casa de caramujo até o sol encarde.

18.
As coisas da terra lhe davam gala.
Se batesse um azul no horizonte seu olho
entoasse.
Todos lhe ensinavam para inútil
Aves faziam bosta nos seus cabelos.

19.
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

20.
Lembro um menino repetindo as tardes naquele
quintal.

21.
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais
ou no Viterbo –
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
– Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
– Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
– Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:

– 
Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc.
Etc.
Etc.

Maior que o infinito é a encomenda.                       
Manoel de Barros

O morto e o vivo

Inútil pedir perdão
Dizer que o traz no no coração.
O morto não ouve.


Ferreira Gullar

Querido diário (Tópicos para uma semana utópica) Cazuza

Segunda- feira:
Criar a partir do feio
Enfeitar o feio
Até o feio seduzir o belo

Terça-feira:
Evitar mentiras meigas
Enfrentar taras obscuras
Amar de pau duro

Quarta-feira:
Magia acima de tudo
Drogas barbitúricos
I Ching
Seitas macabras
O irracional como aceitação do universo

Quinta-feira:
Olhar o mundo
Com a coragem do cego
Ler da tua boca as palavras
Com a atenção do surdo
Falar com os olhos e as mãos
Como fazem os mudos

Sexta-feira:
Assunto de família:
Melhor fazer as malas
E procurar uma nova
(Só as mães são felizes)

Sábado:
Não adianta desperdiçar sofrimento
Por quem não merece
É como escrever poemas no papel higiênico
E limpar o cu
Com os sentimentos mais nobres

Domingo:
Não pisar em falso
Nem nos formigueiros de domingo
Amar ensina a não ser só
Só fogos de São João no céu sem lua
Mas reparar e não pisar em falso
Nem nas moitas do metrô nos muros
E esquinas sacanas comendo a rua
Porque amar ensina a ser só
Lamente longe por favor
Chore sem fazer barulho

Procurei em todos os lugares por onde andei um alguém que me entendesse e também á si mesmo. Não encontrei, talvez por que não procurei como deveria ou talvez por que essa pessoa estava ocupada demais procurando os defeitos alheios. Já sofri bastante com a idéia de nunca encontrar alguém perfeito e sofrer mais quando me decepcionasse por isso, aprendi a não sofrer mais, não por que essa idéia não existe, pois existe e está ardentemente me machucando com freqüência, mas aprendi a conviver bem com esse fato, afinal eu sou uma pessoa imperfeita que também decepciona.
Fico pasma com a capacidade de certos seres humanos de serem hipócritas. Não a hipocrisia que se faz necessária à vida em sociedade e sim uma exagerada, que maltrata e me dá nojo. Pobres seres humanos, eu, você... Idiotas, imbecilizados pela própria ignorância de não transformar conhecimento em sabedoria e passar a vida tentando conhecer e ter o tão almejado saber.
Machuquei meus joelhos enquanto rezava e enquanto rezava conheci meus próprios demônios. Não sofro mais com a perda, nem com a hipocrisia que certas pessoas têm em demasia, não me importo mais com os sonhos que talvez não passem disso. A vida é linda e merece ser curtida, afinal quem saberá quando será tarde demais?
Às vezes deixar fluir é o remédio mais santo para evitar aflições posteriores e sofrimento descomedido, e nem sempre aula teórica é melhor, pois a prática é mil vezes diferente.
É por isso que parei de esperar, gosto do que vem como inusitado. Viver agora é como nadar num rio e as coisas acontecem de forma natural. Eu agora sou natural: vivo, sou e de fato estou no lugar onde me encontro. Poucos o fazem.
Sou grata por conhecer os que conheci. Ainda acredito na essência das pessoas. Me sinto mais leve. Flutuar se faz possível.
A gratidão é um dos melhores sentimentos que há. E é só.

Depoimento

Eu sou um homem mal e egoísta, as pessoas tentam me fazer bom. Eu não faço por merecer nenhum dos sentimentos que eles por amor, me oferecem.
Eu não aceito ajuda e só penso em mim, todos os esforços deles para comigo são em vão: eu jogo tudo fora, me dispo com uma agilidade impressionante. Nenhuma semente minha brota.  Sou totalmente infértil. Eu não tenho razão de existir, embora seja eu quem enche o bolso de todos esses ao meu redor. Não só o bolso, preencho cada vazio da alma de quem precisa, mas no fim tudo isso faz parte do meu ritual maléfico de tortura mascarada. 
Eu não posso nunca despir-me de minhas máscaras pois que a sociedade assim o exige. A sociedade é boa e me insere no sistema. Ela diz que sem o sistema eu não atingiria a felicidade, então eu por obediência, trato de me encaixar do jeito que me caiba. 
O sadismo está em mim, devora todas as minhas entranhas, e dentro das tuas veias corre o líquido do meu prazer. Eu mato, roubo, minto. Eu mato, roubo, minto por plenitude. Eu sou pleno em qualquer lama cabalística e teus ratos valem pra mim, dragões. 
Eu sou o fio de cabelo na tua sopa, você precisa tirar-me cautelosamente e beber o líquido que é o suor dos teus. Tu bebe-o e eu os engulo por inteiro. 
Ninguém quer ser igual a mim, mas eu estou dentro dos pedaços de cada um.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O homem- anjo

Encontrei um anjo na rua. Com ele encontrei o mais sincero sorriso que pode caber numa desdentada boca. Quando o vi, logo soube que não se tratava de um ser animal, mesmo que racional. Era sobrehumano. Havia atrás dele, ao redor do corpo, uma luz que brotava de não sei onde e o iluminava por inteiro. Minha vontade era agarrá-lo, pedir-lhe que me levasse consigo pro seu mundo, mas não o fiz: paralisei e fiquei lá a admirar o anjo velho com sua arte, tentando ganhar seu sustento.
Nos olhos do anjo, eu via mil coisas: parece-me que brotavam cores que eram direcionadas pelo olhar e essas cores preenchiam todo o ambiente, o deixando muito mais leve. E uma vez atingida por esse olhar não havia complicação que não se desfizesse.
Quando meus olhos viram tamanha imensidão num tão franzino e maltratado corpo, não sei se foi o mundo que parou de girar ou o tempo que parou de marcar seu frenético e ordinário tic- tac, tampouco sei se de fato todas as pessoas ao meu redor desapareceram  gradualmente, como o sol o faz quando já é hora de se por. O que sei é que fiquei sem reação: uma garota encantada a olhar o objeto do seu desejo, um homem- anjo. Pus em seu chapéu algumas moedas e saí caminhando, antes o vi agradecer com um gesto e juro: nunca vi um sorriso tão iluminado. Fiquei feliz por saber que ainda há anjos e escrevo na esperança de lembrar-me desse dia, afinal não é todo dia que se pode encontrar-se com tais seres dotados de tanta luz. E trazer o encanto de um deus é impressionante, ao menos pra mim.

Poema besta

Um pouco mais de adoçante
na vida de quem não sabe
que gosto bom
que o amor tem.

Mas tem que ser bom adoçante
que adoce antes do tempo
a vida, a vinda e a boca
além dos sonhos desse alguém.

de estudante?

          Ele sabia que em um olhar nada inocente se escondia a mais culpada das tentações? E que falando o que tinha de ser falado, conquistaria mais do que se deveria esperar? É claro que sabia, era homem.
          E por trás daquela pele um pouco mais escura que o branco, se escondiam mil coisas que ele fazia menção de mostrar. Era como se soubesse que há em mim mais atração pelo mistério do que pelas matérias que a vida de estudante me impunha.
         E então o que ele era? Eu não fazia muita questão de entender, nenhuma explicação iria me bastar. Com ele tudo era insuficiente. Mas era só uma paixão de estudante: nunca ia morrer (nunca morreu) e tampouco não duraria sequer mais um segundo. Mas um segundo era muito, eu precisava de menos que isso para saciar-me.

Sutilmente felicidade

Eu achava que quando a felicidade chegasse, ela ia chegar gritando, pra avisar que já estava ali. Chegou calma, sutil e silenciosamente. Quase não a percebi. Mas aí ela mexeu comigo e eu me senti tão grata por tê-la, era como se nada pudesse me atingir...

Teus olhos são duas caixas

Teus olhos são duas caixas
e mil monstros a guardar
Seus segredos, você sabe que me encantam.
Há muito com que me encantar.
E  vai além de qualquer infinito ínfimo
E não há nada que me tome mais por inteiro
do que o seu corpo a envolver-me
juntando cada pedaço
fazendo dois corpos parecerem um só.
E então nada melhor do que perder-me
se é em ti que eu vou me encontrar.